
A ilha de Curaçao enfrenta um desafio ecológico: o peixe-leão invasor.
Com suas listras vermelhas e brancas parecidas com as da zebra, seus tentáculos carnudos e longas barbatanas com aparência de leque, o peixe-leão é peçonhento.
Ele é nativo do Pacífico Sul e do Oceano Índico, mas, no final dos anos 1980, a espécie foi introduzida nas águas quentes tropicais do Oceano Atlântico – mais precisamente, no litoral da Flórida, nos Estados Unidos.
A causa exata é desconhecida, mas se imagina que eles tenham sido libertados por aquários marinhos.
No início dos anos 2000, o peixe-leão atingiu o litoral do Caribe e o recife de coral de Curaçao, que depende significativamente do turismo de mergulho para gerar empregos e desenvolver a economia local.
No Brasil, o peixe-leão foi avistado pela primeira vez em 2020, no arquipélago de Fernando de Noronha. De lá, ele se espalhou pelo litoral do Nordeste, podendo vir a atingir toda a costa brasileira.
Na verdade, o peixe-leão não é bem-vindo em nenhum lugar. Isso porque ele se reproduz em velocidade alarmante.
As fêmeas liberam cerca de 2 milhões de ovos por ano. E, durante o crescimento, o peixe-leão se alimenta de peixes nativos menores e da vida marinha que protege os recifes de coral. Este comportamento cria um desequilíbrio que prejudica o ecossistema dos recifes.
A presença do peixe-leão interfere com o turismo de mergulho e com a pesca comercial. Pesquisas demonstram que a presença do peixe-leão, mesmo que por curto período, pode reduzir a população de peixes nativos do recife em 79%.
Mas o que era um grande problema catalisou um movimento pela adaptação inovadora e responsabilidade ambiental.
A alimentação, arte e educação fizeram com que duas mulheres locais, Helmi Smeulders e Lisette Keus, enfrentassem o relacionamento único, mas complicado, entre Curaçao e o peixe-leão.
Smeulders abandonou sua carreira de advogada na Holanda em 1998 e se mudou para Curaçao, onde acabou se tornando chef de cozinha, mergulhadora e conservacionista. Mas o que ela sabia sobre o combate ao invasivo peixe-leão, a pesca sustentável e a importância de proteger o recife para as gerações futuras?
Na verdade, não muita coisa, até conhecer Keus. A mergulhadora local ensinou a Smeulders – e a outras mulheres da ilha – como encontrar e capturar o peixe-leão para salvar o recife de coral.
"Mostrei [aos chefs] como limpar os peixes, ofereci receitas e dei lotes [de peixe] de graça para os restaurantes praticarem", conta Keus.
Em 2023, o Ibama informou em nota à BBC News Brasil que, embora não haja proibição legal no país, a autarquia não recomenda o consumo do peixe-leão, pois seu manejo "requer técnicas específicas".
Mas, depois de encontrar o peixe-leão durante seus mergulhos por anos a fio, Keus decidiu se dedicar ao controle da população da espécie.
Ela se especializou na sua captura e ficou conhecida como uma espécie de "encantadora de peixes-leão". Keus parecia saber exatamente onde encontrar aquela criatura tão arredia.
Em 2012, ela começou a tentar vender o peixe para os restaurantes.
O começo foi difícil. Ninguém queria comprar (nem comer) os peixes porque se acreditava que eles fossem venenosos. Na verdade, eles são peçonhentos – suas barbatanas nas costas causam picadas ao toque e podem gerar dores e inchaço.
"Todos tinham medo [do peixe] e ninguém sabia que ele é seguro para tocar ou comer", ela conta. "Enchi meu refrigerador, mas acabei devolvendo quilos de peixe para o oceano porque não conseguia vender."
Os negócios iam mal, até que Keus criou uma forma de tornar o peixe palatável para os chefs locais.
"Expliquei que o peixe-leão é uma espécie invasora", ela conta. "Por isso, ao limpar e servir o peixe com segurança, na verdade, eles estão ajudando a proteger o ecossistema local de Curaçao."
Foi aí que os negócios de Keus com o peixe-leão começaram a crescer. E ela precisou enfrentar outra questão: os resíduos.
Depois de remover as partes espinhosas e peçonhentas, sobravam apenas cerca de 20% do peixe para consumo. Por isso, Keus começou a pedir aos restaurantes que devolvessem as barbatanas para fazer bijuterias. E, em 2016, ela abriu uma loja chamada Lionfish Caribbean, na aldeia de Kura Hulanda.
Keus vende bijuterias artesanais de peixe-leão e oferece educação e treinamento para os mergulhadores e turistas sobre a espécie invasora. E também abriu um salão de prova que serve peixe-leão na forma de tacos e frito com batatas fritas.
Seu slogan é: "Nós os comemos para vencê-los."
Smeulders é outra grande defensora do uso de peixe-leão na cozinha. Ela começou em 2013, quando preparou um grande jantar de recepção para o casal real holandês, durante sua visita a Curaçao. A ilha faz parte do Reino dos Países Baixos.
Smeulders é conhecida por usar exclusivamente ingredientes locais. Por isso, a inclusão do peixe-leão no cardápio não foi apenas uma decisão lógica, mas também uma escolha para criar um menu benéfico e sustentável.
Ela pediu a Keus e outros mergulhadores que trouxessem o máximo de peixes-leão possível para o jantar.
De posse dos peixes, "fiz o que faço de melhor", relembra ela. "Servi um prato de iscas de peixe com um toque caribenho moderno."
O grande destaque foi seu peixe-leão escaldado, preparado com um rico e amanteigado molho holandês e um pouco de limão.
A carne do peixe-leão é branca e seu sabor é suave e delicado, entre o bacalhau e a lagosta. Por isso, "ele ajudou a capturar a essência da cozinha única da ilha", segundo Smeulders. A espécie também é uma boa fonte de ômega 3.
Além das lições de cozinha e de saciar o estômago, Smeulders conta aos seus alunos as aventuras vividas nos seus mergulhos e durante a pesca do peixe-leão. Ela se tornou uma corajosa pescadora da espécie por seus próprios méritos.
Smeulders usa o peixe-leão para ensinar sustentabilidade e responsabilidade ambiental. Ela incentiva as pessoas a levar em conta o lado ético do consumo daquele peixe que está dando sua vida para elas.
A chef de cozinha espera relembrar às pessoas o papel delas na cadeia alimentar, incentivando uma relação direta com o meio ambiente e o ciclo da vida.
Smeulders escreveu dois livros de receitas e também oferece os eventos Mesa do Chef, onde as pessoas podem observá-la trabalhando com sua equipe.
"Algumas das minhas receitas preferidas de peixe-leão são saborosos ceviches", conta Smeulders. "Gosto também como filé tártaro, tacos e uso as espinhas para fazer um ótimo caldo."
Ela explica que "podemos também usar a espinha dorsal porque ela é proteína. Aquecemos as espinhas por 20 minutos a 200 °C, o que neutraliza o veneno. Você pode usar [as espinhas] como pequenos palitos."
As duas dinâmicas pescadoras de peixe-leão são corajosas até o fim. Elas reconhecem que são fascinadas pela emoção da sua atividade.
"Se você acordar e perceber que, naquele dia, você irá pescar peixe-leão, com certeza aquele será um bom dia", afirma Smeulders.
O Dérbi do Peixe-Leão de Curaçao
Todo mês de outubro, a Lionfish Caribbean é a promotora oficial do Dérbi do Peixe-Leão de Curaçao. O evento inclui pesca e competições.
Além do seu Mercado Oceânico e de Conservação, são oferecidos prêmios em dinheiro para os mergulhadores que conseguirem trazer a maior quantidade de peixe-leão ao final de cada evento.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
Fonte: TNH1