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Pausa para a Leitura: A carta que precisa ser lida

Mestre Graciliano, Eu decidi usar uma carta: esse meio que tu tanto gostavas, e que hoje está obsoleto, para falar algumas coisas que julgo urgentes.

Mestre Graciliano,

Eu decidi usar uma carta: esse meio que tu tanto gostavas, e que hoje está obsoleto, para falar algumas coisas que julgo urgentes. Seguindo teus conselhos, tentarei não usar as exclamações para não espantar ninguém, tampouco a escorregadia subjetividade que sempre aflora em meus dedos insistentes em escrever. Evitarei eufemismos e as tentadoras reticências que uso vulgarmente. Procurarei abster-me de uma palavra que pode te desagradar: algo. E eu tomarei posse de certos recursos linguísticos não muito confortáveis para a maioria dos leitores de hoje: a segunda pessoa e o futuro do pretérito, que estavam presentes em tuas correspondências. Apropriar-me-ei da sublime mesóclise – que receio desaparecer das Gramáticas de tão esquecida que permanece. Serei falha no uso dos vocábulos regionais da metalinguagem que tu criaste. O dialetismo semântico, sem adornos ou excessos, da tua obra, está sacramentado e qualquer tipo de apropriação minha, neste sentido, seria falha.

Moro no cenário de Caetés e Angústia desde que eu era menina. Diferente de ti, nunca me senti estrangeira nesse lugar, como quando foste morar no Rio de janeiro, capital do Brasil na época. De fato, nunca saíste de Alagoas. E eu entendo essa dificuldade em transportar a alma para onde o corpo está. Confesso que um desassossego e uma inquietação tomam conta de mim aqui. Mas não acho que a gênese disso é o lugar, tampouco quero pensar nisso, por enquanto. A cor do mar continua com o mesmo tom de verde. As belezas naturais sofreram alguns desgastes que não convém mencionar, afinal estes elementos sempre foram secundários na tua obra – as adversidades humanas sempre foram maiores que os elementos externos estéticos. De que adianta um oceano imenso se as pessoas carecem de água?  Os bondes sumiram, mas a praça dos Martírios, a rua do Sol, a rua da Lama e a favela do Reginaldo continuam do mesmo jeito. Pararam no tempo. A cidade, que para ti já era grande, cresceu de uma maneira que te surpreenderia, mas ainda mantem os ares de província e os mesmos abismos colossais que tu encontraste.

Existe uma coisa que torna esta terra, Alagoas, feérica: ter sido a terra onde surgiste. A alma da cadela Baleia ainda zanza pelos sertões: magnânima, livre e feliz. Eu, que na minha primeira leitura de “Vidas Secas” não entendi por que a mataste. Hoje eu sei. Foi a maneira de fazê-la eterna.

Sinto muito pelo cárcere. Meu conterrâneo Getúlio muito me envergonha. Mas como disseste, tanto faz estar preso ou solto. Lamentavelmente, hoje estamos todos presos em conceitos, vícios, comodismos e dispositivos eletrônicos. Entre muralhas de segurança e muros de lamentações, vivemos ainda a dor que é possível sentir em tuas obras. Angústia – o título já detém uma imensidão e uma potência que alguns livros inteiros não conseguem revelar. Aliás, como tu eras preciso nos títulos. Eu tenho uma incapacidade absurda em titular qualquer coisa. E todos os teus títulos poderiam dar nome a qualquer um dos teus livros. Talvez não saibas desse caráter genial da tua obra. Os títulos dançam por entre as obras e as obras sempre convergem em um único título – que aliás poderia nomear qualquer bom livro ou qualquer biografia que se preze (no singular, claro).

Vidas secas.

Poucos sabem, na tua terra natal, que a mesma política que te prendeu, te soltou no mundo da literatura – quando foste prefeito de Palmeira dos Índios. Quem diria que ofícios e relatórios de um chefe do executivo de uma cidadezinha do interior de Alagoas causariam tanto impacto? Foram esses documentos oficiais que chamaram a atenção do governador da época que selaram o teu destino. Em relação à política atual, vou me abster de comentar. O proselitismo que tanto te inquietava nunca esteve tão em voga, lamentavelmente.

Eu nunca entendi como as pessoas da tua terra não te conhecem melhor. Alagoas pode ser ingrata com seus filhos. Tu, responsável por exaltar o povo sertanejo e dignificar a luta genuína dos nordestinos contra a seca, contra a fome, contra o mundo e contra as injustiças - deverias ser honrado, prestigiado e celebrado. Tu, sempre e antes de tudo, alagoano de Quebrangulo, detentor da mesma dor dos retirantes e dotado da mesma voz e do mesmo silêncio daqueles alagoanos que não sabem ler ou falar. Ainda hão de ler. Ainda hão de entender. Ainda. E, se isso aliviar teu coração, és reconhecido por um mundo longe daqui. És comparado, pela critica, ao Dostoievski dos teus livros tão estimados. Foste traduzido não apenas no alfabeto romano. Enquanto tropeçamos, eu e tu, cada um em um tempo, em traduções russas de grandes Clássicos, os russos precisaram aprender a traduzir um dialeto que a maioria dos brasileiros não compreende – o admirável regionalismo mágico que determinou o modernismo na história da literatura brasileira, uma ode a cultura e as tradições do nosso sofrido país. E teus personagens ganharam vida no cinema, teu nome é proferido com reverencia e respeito por todos os lugares deste mundo. Até a cadelinha Baleia foi materializada e virou uma linda escultura em madeira feita por um artista de Pernambuco – Marco de Sertânia. A maioria das casas que tem a escultura, não tem os teus livros. Mas eu ainda sonho em vê-la esculpida gigante em algum lugar muito especial deste teu estado. A Baleia que era bicho mas era gente. O pequeno animal com as costelinhas aparentes que carregava um oceano inteiro no nome, todas as lágrimas do mundo nas costas e uma aridez absoluta na existência. A humanidade de toda uma obra reduzida ao animal – que pensava, sentia, sofria e constituiu o caráter reflexivo de toda a tua literatura.

A cidade de Maceió, meu caro, ostenta um letreiro enorme por vários lugares: Maceió é massa. Para mim, nunca fez muito sentido. Deveria ser Maceió é Graça – não era assim que teus amigos o chamavam? Não percorro nenhuma avenida importante com o teu nome, não vejo as pessoas conhecerem a tua vida ou entenderem a tua obra.

Nas escolas deste estado, deverias ser mandatório. Ler Graciliano Ramos deveria ser obrigatório para qualquer brasileiro. E para os alagoanos deveria ser motivo para orgulho e encantamento.

Mas o que causa angústia não é o esquecimento. Dói o desconhecimento. E a minha insônia de todos os dias sempre me revela uma verdade árida e temerária: as vidas, meu dileto professor, seguem e perseguem do mesmo jeito.

Secas.

? *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima

Fonte: TNH1

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