Depois de encarar tantos monstros, ela chegou. Sabia que fora convidada por obrigação. E por exigência das circunstâncias, foi parar ali. Partem os corações, partem os raios e os destinos e ela estava presente – inteira. A antítese das palavras contrapostas parecia absurda. Não sentia tristeza. E nem felicidade. Sentia-se num hiato emocional que não era confortável. Não sentir era perigoso. Era uma sensação de descrença absoluta. Preferiria estar no inferno, pensou. Pelo menos no inferno, estaria por merecer. E ela sabia que não merecia estar ali.
Visivelmente, já havia uma inadequação absoluta entre aquelas pessoas e ela. Para não se sentir tão menor, fez-se num tamanho que não cabia. Adquiriu uma condição de superioridade arriscada e passou a observar criticamente quem estava ao redor. Escrutínios pareciam mais fáceis do que encarar a realidade – tão ilógica daquele momento.
Todos pareciam semelhantes em insignificância e solidão. Vestiam-se com alguma coerência. E ela nem sabia ao certo que roupas estava usando. Certamente, eles nunca entenderiam tudo que ela havia lido e aprendido. Pensou na Bíblia, no Torá, e nas escrituras. Planejou uma ida a um centro espírita e quis fazer algum feitiço – lembrou que não entende de magia. Pensou no pai que admirava, em tudo que a mantivera viva até então. Quando o viver ganha o status de adjetivo. Viver é para poucos, pensou. Existir é condição intransitiva. Pensou na morfologia das palavras e achou incoerente a classificação abstrata de um substantivo que não poderia ser mais concreto. A morte estava viva. Meros mortais – estão mortos e não sabem.
Sentia-se num palco. Contracenava, não agia. E, nesse tipo de ambiente, a teatralidade era mandatária. O ambiente era hostil para as manifestações emocionais adequadas. E assim como o roteiro de filme iraniano – acabaria abruptamente e ninguém entenderia nada. Ela, que nem fumava, pensou em pegar um cigarro. Ela, que não bebia, considerou apelar para o álcool. Conjecturou consultas com psiquiatras – os remédios poderiam anestesiá-la. Manteve uma diplomacia insustentável com aquelas pessoas improváveis. Talvez, esperassem que ela estivesse demasiadamente desconfortável. E ela estava resignada. Nos últimos dias, tudo adquirira uma face tão inverossímil e ela sabia, de uma forma quase mediúnica, o desfecho de tudo. Tornou-se íntima de um medo que acabara de conhecer. A nesga de alguma luz de alento não coexistia com todos aqueles olhos – que não viam.
Como conseguem conversar? De que será que acham alguma graça? De repente, os sorrisos adquiriram um caráter ofensivo. Esquecera de tomar água e lembrou que nem havia dormido. Aproximou-se da mãe. Não suportou ficar muito tempo com a irmã. E nem com ninguém. Evocou pensamentos mágicos inconsistentes, assumiu uma postura indiferente aos outros. Fixou-se nela mesma, perdeu a capacidade de ser solidária ou generosa. Imiscuiu-se numa miríade de sentimentos inexatos e antinaturais. Sentiu-se compelida a formalidades e rituais sem sentido. Não queria que aquele dia fosse relembrado ou revivido. Desejava dar adeus a todos que ainda tinham um coração – que batia.
Quem estava ali, estava de corpo presente.
Todos pareciam acreditar numa verdade que ela questionava. Acreditam num Deus que ela precisava perdoar. Veneravam imagens tão diversas de tantos santos que ela não conhecia.
Aquele dia estava em volta dela – enorme como uma saudade.
Todos voltariam para suas casas e ela não sabia mais para onde poderia ir. Achava que longe dali poderia se sentir um pouco melhor. Lembrou que sonhos insólitos têm uma inexplicável habilidade de serem convincentes. Tentou acordar. Nenhum despertador tocou. E ela não despertou nunca dali.
Para conseguir falar sobre aquele dia, escrevia na terceira pessoa.
Ela nunca conseguiu.
Enterrar.
O pai.
? *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima
Fonte: TNH1