Na fotografia que ilustra o post do Instagram, Zezinho Santos, arquiteto e um dos herdeiros do Grupo João Santos, está sentado sobre as próprias pernas. De óculos escuros, encara sua mão direita, de onde emerge o gesto fálico com o dedo médio esticado e o anelar e o indicador contraídos -uma dedada, como se diz em Pernambuco.
O mis-en-scène é ofuscado (ou potencializado) pelo texto, endereçado aos destinatários da dedada. Com uma verve entre o sarcasmo e a baixaria, Zezinho ataca o tio Fernando Santos: "escroque" que "mantinha toda a família refém (...), liberando como renda apenas o que bem entendia (e quando entendia), enquanto enriquecia a si mesmo e aos parentes da cadela da esposa"
Ataca a esposa do tio: "A maior pistoleira que já vendeu as partes no estado de Pernambuco". E ataca a enteada do tio: "Lésbica enrustida mau-caráter e torpe".
Essas são as partes publicáveis -há trechos mais pesados.
Zezinho já tinha, pela mesma rede social, chamado o tio Fernando de "criminoso abjeto" e a família da esposa e da enteada dele de "corja de gente vulgar e mal-intencionada".
O rompante mais recente, de 20 de janeiro passado, o mais virulento de todos, recebeu uma enxurrada de curtidas e comentários, entre os quais o do ator e dramaturgo Miguel Falabella, amigo de Zezinho ("Muito impactado por seu contundente relato!"). Gerou uma resposta judicial dos ofendidos, como se verá adiante.
E expôs com estardalhaço a guerra familiar travada no Grupo João Santos, conglomerado bilionário pernambucano que por décadas foi um dos principais do Nordeste e o segundo maior produtor de cimento do Brasil -e que hoje enfrenta ruína administrativa, financeira e ética.
Em maio de 2021, o Grupo João Santos foi alvo da Operação Background, da Polícia Federal em parceria com a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que trouxe à tona malfeitos na gestão, sobretudo com o uso de empresas laranjas para encobrir sonegação fiscal e trabalhista. Em dezembro de 2022, o grupo pediu recuperação judicial.
Dois dias depois da furiosa publicação da dedada, Zezinho e vários parentes da família Pereira Santos (entre eles o trio xingado no post) viraram réus na Justiça Federal por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Fernando e José (pai de Zezinho) são apontados pelo Ministério Público Federal (MPF) como líderes da organização criminosa.
O Grupo João Santos atuou ou atua nos ramos de cimento, sucroalcooleiro/agropecuário, de celulose, telecomunicações e táxi aéreo. Segundo o MPF, as principais empresas do conglomerado deixavam de recolher impostos e pagar obrigações trabalhistas e usavam firmas laranjas para pulverizar o dinheiro desviado.
"Por meio de uma ciranda financeira, ocorria a transfere?ncia de patrimo?nio para empresas que possuiam um menor passivo tributario e/ou trabalhista", disse a procuradora da República Silvia Regina Lopes, autora da ação contra o grupo. Dada a complexidade do esquema, o MPF apresentou à Justiça Federal cinco diferentes denúncias relacionadas à Operação Background -três já foram acolhidas.
Depois de pedir recuperação judicial, o Grupo João Santos assinou, em agosto do ano passado, o maior acordo tributário da história nacional, para regularizar débitos de quase R$ 11 bilhões inscritos na dívida ativa -o passivo total do grupo é estimado em R$ 13,6 bilhões. Entre outras obrigações, a transação busca regularizar a situação de mais de 20 mil trabalhadores com FGTS atrasado (entre empregados ativos e ex-funcionários).
A primeira parcela, de R$ 230 milhões, deveria ter sido paga até dezembro passado. Não foi. Mas, segundo a PGFN, um aditivo à transação prorrogou os prazos e definiu que a parcela inicial seria paga via financiamento DIP (contraído por devedores em recuperação judicial). Em 31 de janeiro, o grupo pagou R$ 150 milhões e tem até o dia 29 de fevereiro para saldar os R$ 80 milhões restantes.
O marco da derrocada do conglomerado foi a morte do patriarca que o fundou e o batiza, aos 101 anos, em 2009. Nascido pobre em Serra Talhada, cidade do sertão pernambucano mais conhecida por ser a terra de Lampião, João Santos criou um império cuja joia sempre foi o ramo de cimento, sobretudo a marca Nassau.
Vice-líder do setor cimenteiro a partir da década de 1970 (e até por volta da primeira metade dos anos 2010), nunca conseguiu, porém, suplantar o gigante Votorantim -também erguido por um pernambucano, José Ermírio de Moraes.
Num dos ciclos de bonança, no início dos anos 2010, o Grupo João Santos chegou a faturar mais de R$ 3 bilhões por ano.
João Santos teve sete filhos, quatro homens e três mulheres, e seu negócio sempre foi patriarcal. Escolheu o primogênito para sucedê-lo na liderança. Mas João Santos Filho morreu num acidente aéreo em 1981, no auge do poder. Coube ao caçula Fernando assumir o bastão e coliderar enquanto o pai esteve vivo. Era secundado pelo irmão José.
Na definição de uma fonte próxima à família e que chegou a conviver com João Santos, certa vez o patriarca definiu assim os três filhos homens atuantes nos negócios: achava que o primogênito seria presidente do Brasil, por seu tino empresarial e habilidade política; que José é um diplomata e deveria ter ido para o Itamaraty; e que Fernando é um trator, passa por cima de tudo.
As três irmãs -Rosália, já morta, Ana Maria e Maria Clara- não interferiram diretamente nos negócios, até que dois dos filhos de Ana Maria (João Carlos e Luis Antônio Noronha) começam a ascender no ramo do cimento do grupo e a incomodar Fernando -o trator.
Após a morte do patriarca, os Noronhas deixam o grupo e as desavenças internas se ampliam. Mas, como sintetizou um conhecedor da guerra fratricida, nos tempos de bonança a disputa era abafada pelos lucros.
Era mais fácil ver alguns dos sobrinhos que agora se digladiam com Fernando -frequentadores do jet-set do Recife e do eixo Rio-São Paulo- em colunas sociais do que nas páginas policiais. Especialmente Zezinho, cuja união com o também arquiteto Turíbio Santos sempre teve destaque nas redes sociais e em blogs de celebridades (a festa de casamento dos dois, em 2009, foi embalada pela amiga Rita Lee), e a irmã dele, Juliana Santos.
Junto com a mãe, Lilia, ela é dona da loja de grifes de luxo Dona Santa, a "Daslu nordestina" -que, aliás, é acusada pelo MPF de lavar dinheiro da dita organização criminosa.
A crise econômica iniciada em 2014 atinge em cheio os negócios do grupo e amplifica o conflito familiar. As três irmãs e alguns dos seus filhos reclamam da gestão concentradora (e tida agora como calamitosa) de Fernando e José, especialmente do primeiro: a falsa calmaria fabricada pelos lucros e dividendos vira tormenta.
Em 2018, um dossiê com acusações à gestão Fernando/José é enviado à Polícia Federal, ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Trabalho -emissários do caçula acusam os parentes de serem os autores da documentação, tida como ponto de partida da Operação Background e da danação do grupo.
Numa assembleia em 2022, filhas e netos do patriarca, descontentes com atuação de Fernando e José e acossados pelas investigações, conseguem destitui-los do comando, nomeando dois executivos para as funções deles -em dezembro de 2021, o Tribunal de Justiça de Pernambuco já destituíra Fernando da função de inventariante.
E José, o único que permanecia do lado de Fernando, por fim acaba convencido por irmãs, filhos e sobrinhos a juntar-se a eles na briga, isolando o caçula-trator. Hoje são cinco ramos da família contra ele.
"A gente está numa batalha solitária, à la Dom Quixote", afirma o advogado Taney Farias, que defende Fernando. Ele considera que a recuperação judicial foi feita "de forma açodada e até irresponsável" e tem recorrido à Justiça, por ora sem sucesso, para obter informações e documentos relativos à condução e reestruturação do grupo.
Afirma ainda que o acordo com a PGFN já estava preparado antes da destituição de Fernando e José, mas que seria cumprido usando ativos do próprio grupo, e não via "um negócio financeiro, com um custo altíssimo, com os imóveis avaliados de uma forma que a gente não aceita e com três vezes a quantidade do empréstimo de garantia. É um escândalo."
Os atuais gestores avaliaram os ativos do grupo em R$ 5,37 bilhões, valor que o advogado diz ser muito subestimado -valeriam pelo menos o dobro, diz.
Segundo Taney, o restante da família está "jogando pelo ralo todo o patrimônio do Grupo João Santos, em razão de uma operação [a Background]", que ele define como "uma invenção". "Vão acabar chegando numa falência."
Procurados, os executivos à frente da recuperação judicial não se manifestaram. Também contatado, Zezinho disse que daria entrevista, mas depois não respondeu mais às mensagens.
Especialista no setor de cimento, Milton Cintra lamenta a debacle do grupo. "É um prejuízo gigantesco para o mercado, porque sempre foi uma marca muito forte. E para o Nordeste é uma tristeza maior, uma perda irreparável", diz ele, que foi funcionário por 33 anos do Cimento Nassau e fundou e mantém o site cimento.org.
Enquanto isso, Fernando, sua esposa (Lena) e a enteada (Ana Patrícia) também pedem na Justiça a retirada do ar dos posts de Zezinho. Na queixa-crime movida contra o arquiteto, o advogado Tyago Vázquez afirma que Zezinho cometeu os crimes de calúnia, injúria e difamação contra "uma família de reputação ilibada e reconhecidamente alicerçada por pilares morais sólidos".
Critica o "expediente repugnante da linguagem vil e torpe, permeada por alusões lascivas e pornográficas" para "conspurcar a honra" dos ofendidos. E solicita uma indenização por danos morais, a ser fixada pelo juiz, e cujos valores "sejam revertidos para entidade assistencial voltada ao cuidado com idosos".
Fonte: TNH1