Apenas neste ano, R$ 20.227.706 partiram diretamente do Congresso Nacional, em emendas parlamentares, e foram depositados nas contas bancárias de pessoas físicas Brasil afora. São, pelo menos, 13.601 cidadãos que ganharam alguma quantia do orçamento federal pelas mãos de senadores e deputados federais. O Distrito Federal é o local onde há mais beneficiados com o dinheiro público, recebendo R$ 7 milhões, valor que foi destinado a 4.152 pessoas.
Os dados fazem parte de um levantamento realizado pelo Metrópoles, usando como base as informações do Siga Brasil, plataforma que reúne os pagamentos e as indicações das emendas parlamentares. O painel indica as pessoas físicas ou jurídicas que figuram como favorecidas finais das ordens bancárias emitidas pela União, ou seja, são os nomes de quem o pagamento foi efetivado.
Então, vale explicar a relação dessas pessoas no orçamento público. Na imensa maioria das vezes, elas sequer aparecem nos espelhos das emendas parlamentares, documentos onde são identificadas informações básicas, como o representante responsável pelo uso do dinheiro, o autor da emenda e o objetivo com os gastos. Os indivíduos são os recebedores finais dos valores, que são intermediados por um órgão.
Um caso muito frequente é de docentes de universidades públicas federais que ganharam quantias relativamente baixas, variando entre R$ 300 e R$ 1 mil, para a realização de bolsas ou serviços em prol das instituições. Nos espelhos de emendas, consta a indicação apenas dos centros de ensino e uma rápida explicação da justificativa para a verba. No entanto, segundo o Siga Brasil, os professores foram as pessoas que, de fato, receberam o dinheiro.
Veja valores por UF:
Outro ponto fundamental é que a unidade da Federação do beneficiado não significa, necessariamente, que o dinheiro foi recebido naquele local. Um profissional carioca pode ter ganhado um valor referente à realização de obras no DF. Constará no sistema, então, que o repasse foi para um indivíduo do Rio de Janeiro.
De acordo com o Senado Federal, a identificação do fato gerador de cada pagamento depende da verificação dos processos administrativos que o respaldam, os quais não constam da base de dados do Siga Brasil. Em tese, para receber a emenda, uma pessoa precisa concluir todas formalidades exigíveis para a realização dos pagamentos. Não haveria nenhuma indicação que proíba uma pessoa física de ser o beneficiado final desse valor.
Os R$ 20 milhões para os cidadãos brasileiros representam o quantitativo pago neste ano, incluindo emendas de anos anteriores que tiveram o montante transferido para as pessoas em 2024. Sobre as transferências especiais, conhecidas como as polêmicas "Emendas Pix", não há registro de que um CPF tenha recebido alguma quantia.
Situações e comparativos
O recordista do benefício é um empresário do ramo de construção civil na Paraíba. O número do CPF dele aparece como o recebedor de R$ 600 mil em duas emendas diferentes de 2023. No entanto, ambas têm o mesmo objetivo: obra em uma delegacia da Polícia Federal no estado.
Como explicado anteriormente, o nome do empresário não consta como beneficiado pelo documento dos parlamentares que solicitaram o repasse. No caso dele, o dinheiro teve como unidade orçamentária o Departamento da Polícia Federal. O dinheiro chegou até as contas do homem após, segundo o espelho de emenda, a conclusão das obras.
Para efeitos de comparação, os R$ 20 milhões depositados para pessoas físicas em 2024 seriam capazes de pagar os valores mínimos do Bolsa Família, estabelecido em R$ 600, para mais de 33.712 famílias brasileiras em um mês. O Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade, poderia ser pago por mais de 14.325 vezes.
Tipos de emenda e valores vindos das bancadas estaduais
As emendas feitas ao orçamento, por meio da Lei Orçamentária Anual (LOA), são propostas em que os parlamentares indicam a alocação de recursos públicos por conta dos seus compromissos políticos, fato que, geralmente, está associado ao eleitorado que o elegeu, reforçando um caráter representativo.
Há quatro tipos de emendas básicas feitas ao orçamento: individual, de bancada, de comissão e da relatoria. Além disso, existem as polêmicas "Emendas Pix", que representam as transferências especiais.
Basicamente, as emendas individuais são de autoria direta de cada senador ou deputado. Os repasses de bancada são coletivos, de autoria das bancadas estaduais ou regionais. Há também aquelas apresentadas pelas comissões técnicas e mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Conhecidas sob a alcunha de "orçamento secreto", as emendas do relator são feitas pelo deputado ou senador que, naquele determinado ano, foi escolhido para produzir o parecer final sobre o Orçamento – o chamado relatório geral. Mas, apesar de constar o nome apenas do relator, são solicitadas por outros membros da política brasileira. Por isso, era quase impossível identificar quem era o verdadeiro autor do repasse.
Nos termos da Resolução nº 1/2006-CN, as bancadas estaduais são consideradas autoras das emendas. A possibilidade se dá, normalmente, por meio de um pedido feito por um parlamentar sendo apresentado aos outros políticos da unidade da Federação pela qual foram eleitos. As emendas de cada bancada estadual devem ser apresentadas juntamente com a ata da reunião que decidiu por sua apresentação, aprovada por 3/4 (três quartos) dos deputados e 2/3 (dois terços) dos senadores.
À procura pela autoria dos dispositivos orçamentários, o cidadão apenas encontraria a indicação da bancada de certa localidade. Durante a execução orçamentária, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024 determina que a priorização e a indicação das emendas serão realizadas pelos autores (no caso, a bancada estadual) por meio de ofício encaminhado diretamente aos ministérios, aos órgãos e às unidades responsáveis pela execução das programações.
Seria necessário um grande esforço adicional para tentar identificar, por meio de ofícios e relatórios, a quem pertence a ideia da emenda. Por vezes, isso é impossível por meio de transparência ativa, quando o Estado compartilha espontaneamente essas informações. Sendo assim, é muito difícil saber qual foi especificamente o "pai" da emenda, ou seja, aquele político que solicitou o repasse da verba dentro da bancada.
Há uma forte associação entre os locais com mais beneficiados e as atuações das bancadas estaduais. No caso do Distrito Federal, recordista desse tipo de repasse, a bancada distrital enviou R$ 5,57 milhões a 3.966 pessoas. Com R$ 1,66 milhão para mais de mil pessoas, a bancada de Rondônia, por sua vez, também é um dos maiores autores de pagamentos para pessoas físicas.
Em relação ao tipo de emendas que tiveram como beneficiados pessoas físicas, estão:
- Emendas de bancada: 6.022 beneficiados no valor de R$ 8.407.168
- Emendas de relator: 85 beneficiados no valor de R$ 578.896
- Emendas individuais e outros: 7.494 beneficiados no valor de R$ 11.241.642
Falta de transparência
Para a diretora de Programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, o maior risco da falta de uma identificação clara de autoria para as emendas direcionadas a pessoas físicas é a sociedade não conseguir conferir conflitos de interesse e favorecimento com uso do recurso público.
“Acho um pouco estranho destinar emenda para pessoas físicas; pode ser em caso de ONG, mas não é muito comum. Até em casos de bolsa de pesquisa é estranho um parlamentar destinar o recurso”, disse.
Para ela, não há justificativas republicanas para os casos de parlamentares destinarem emendas de bancada a um ente federativo que não o de origem. “Se for partir da boa fé, a única explicação é a ignorância”, acrescentou Atoji.
“É uma traição do deputado que representa os eleitores de um estado mandar emenda para outra localidade. Pode ser visto até como um indício de troca de favor”, completou.
Para a diretora do Transparência Brasil, o ideal é que os projetos para emendas fossem mais robustos, e que os acordos fechados nos bastidores ficassem cada vez mais limitados.
“Existem conversas no ‘cafezinho’ em que parlamentares decidem, antes, para onde vão mandar um recurso e combinam os projetos, mas nem sempre esses acordos seguem interesses republicanos”, alertou.
“Existe hoje uma disputa do Legislativo e do Executivo para controlar o orçamento. É uma disputa de poder”, destacou a especialista sobre as estratégias usadas dentro do Congresso Nacional que visam controlar parte dos recursos sem deixar rastros, como as emendas de relator que foram substituídas pelas emendas Pix e assim por diante.
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“A sensação que temos é que a sociedade está sempre correndo com um chinelo para matar a barata na sala. É lastimável que seja essa a dinâmica e que os parlamentares estejam sempre buscando a forma menos transparente, que é garantir o mínimo de informação sobre as emendas”, completou.
Responsabilidade
O professor fundador do Direito na FGV Rio, Álvaro Jorge, destacou que nem o parlamentar nem o Executivo são donos do orçamento, mas gestores que vão manejar os recursos públicos pensando no interesse da população. “É como um advogado que recebe uma procuração para agir no nome do cliente. O político eleito é um gestor que age em nome de terceiros, e por isso mesmo tem que haver transparência”, disse.
“É natural que exista emenda, porque é a possibilidade de um Congresso plural também propor finalidade ao orçamento”, defende. Para o especialista, não é um olhar de pessimismo com o qual deve-se encarar as estratégias parlamentares em volta de emenda, já que há reações das instituições quando há indícios de mau uso do recurso.
“A ideia da separação dos poderes é que pode ter independência e vigilância. Quando o ministro Flávio Dino pede transparência, é um poder atuando. Quando a Controladoria-Geral da União (CGU) aumenta mecanismos de controle, é também uma forma de fiscalizar”.
Emendas Pix
Alvo de atritos entre o Congresso Nacional e o Judiciário, as emendas Pix são criticadas justamente pela falta de transparência. São recursos públicos que os parlamentares têm o poder de direcionar para estados e municípios. Na grande maioria, não há informação de quem as enviou nem uma destinação específica, o que inviabiliza a atuação dos órgãos de fiscalização e controle.
Alegando a falta de controle, o Supremo Tribunal Federal interveio nos repasses, o que tem causado uma crise entre os poderes. Nas primeiras horas dessa sexta-feira (16/8), por unanimidade, os ministros do STF referendaram a decisão liminar monocrática de Flávio Dino que suspendeu o pagamento das emendas impositivas, nas quais se inserem as chamadas "emendas Pix".
Como resposta, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), desenterrou duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que têm como objetivo enfrentar a mais alta corte do país. A PEC nº 28/2024, de autoria do deputado Reinhold Stephanes (PSD-PR), permitiria que Congresso derrube decisões tomadas pelo Supremo mediante voto de dois terços da Câmara e do Senado. Na prática, isso significa 342 deputados e 54 senadores.
Lira também decidiu colocar para andar a PEC nº8/2021, que limita as decisões individuais de ministros do STF e em outros tribunais superiores. A proposta já foi criticada publicamente por ministros do STF.
Metropoles