A cachorra da raça border collie Maya (foto em destaque), 8 anos, foi um dos animais que não sobreviveu a um ataque de abelhas, em uma casa em Arniqueira (DF), no último dia 24. No entanto, e apesar da dor da perda, os tutores do pet autorizaram a doação dos órgãos da pet, e uma das córneas dela foi recebida pelo gato persa Willy (fotos abaixo).
O transplante interespécies é um procedimento novo e ainda não está regulamentado no Brasil. Porém, nesse caso, aliviou os corações das famílias dos dois animais de estimação. Coronel da reserva da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), o tutor de Maya Adão Macedo contou que todos ficaram surpresos ao saber da possibilidade de doação do órgão para um gato, mas decidiu autorizar o procedimento.
“Para nós, foi uma grata surpresa saber que a Maya contribuiu para tornar melhor a vida de outro animalzinho com a doação da córnea. Esperamos que os tutores de pets sejam estimulados por essa história, para ajudarem os que precisam desse gesto de amor para terem mais qualidade de vida”, afirmou Adão.
Veja fotos do gato Willy:
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O tutor contou que Maya era como uma “bênção de Deus”. Sempre disposta a brincar com a família e receber quem visitava a casa, a cadela apresentava instinto protetor e inteligência, características típicas da raça border collie. Assim, a perda do pet se equiparou à morte de um parente, segundo o coronel da reserva.
Para ele, além da saudade, restaram as boas lembranças, e os laços firmados com base no amor incondicional. “Retribuir esse sentimento é o mínimo que podemos fazer para eles enquanto estão aqui, e da maneira que eles entendem: dando atenção, passando tempo junto, cuidando, brincando, passeando, abraçando. Fica essa lição: ame seu pet enquanto há tempo. Devolva a ele todo o bem que te proporciona; com certeza, a alegria vai te contagiar, e você se tornará um ser humano melhor”, aconselhou o tutor.
Sequestro de córnea
A veterinária Maíra Reis atendeu a border collie após o ataque, no Hospital Veterinário Antônio Clemenceau. “A Maya chegou em emergência. Ele tinha mais de 100 abelhas no dorso. Eu até fui picada por algumas no atendimento. Tinha ferrão na língua dela, aproximadamente 10”, relatou. Contudo, apesar dos esforços da equipe, a cadela não resistiu, e os tutores autorizaram a doação dos órgãos.
A cirurgia de transferência da córnea de Maya para um gato foi efetuada pela médica veterinária oftalmologista Ana Carolina Rodarte, pioneira em transplantes interespécies no Distrito Federal. “Há alguns anos, tenho aprimorado a técnica. O objetivo sempre é de o paciente ter a melhor transparência na visão, só que esse é um grande desafio, porque é muito difícil conseguir doadores”, lamentou.
Esse fato levou a especialista a começar a aprimorar as cirurgias e trabalhar para o aperfeiçoamento de transplantes entre espécies diferentes. O gato persa que recebeu a córnea esquerda de Maya sofria de sequestro de córnea. A condição se caracteriza pelo aparecimento de uma placa de cor escura, na região central do órgão.
“Não foi meu primeiro transplante de cão para gato, e os resultados em gatos são muito bons”, contou Ana Carolina. Até a mais recente atualização desta reportagem, o felino estava em fase de recuperação, mas o tratamento é considerado longo.
O procedimento consiste da colocação de uma lente de contato sobre a córnea. As pálpebras ficam parcialmente fechadas com pontos, e é preciso manter cuidados pós-operatórios com colírios e outras medicações. O paciente segue sob avaliação veterinária diariamente. O resultado preliminar do transplante será descoberto após a retirada da sutura, após 20 dias da cirurgia.
“O melhor resultado que tive foi o de um filhote de gato persa, que havia sofrido uma perfuração no olho. Nós tínhamos a córnea doada de um cachorrinho filhote que havia morrido e não tinha comorbidades. O olho era muito saudável, e propus o transplante. Ele era um filhote com poucos meses, e o doador também. O resultado foi fantástico e muito rápido. Hoje, se você reparar, não diz que o gato foi operado”, detalhou a oftalmologista veterinária.
Critérios
Pacientes jovens, sem diagnóstico de doenças infecciosas e vítimas de fatalidades são potenciais doadores. Ana Carolina destacou que o ideal para os transplantes é que eles ocorram entre animais do mesmo tipo, mas a técnica é uma alternativa para aqueles de diferentes espécies.
A oftalmologista destacou, ainda, que transplantes de cães para gatos tendem a apresentar bons resultados, mas de felinos para caninos costumam ter mais rejeição, pois tendem a apresentar inflamações. Mesmo assim, a veterinária defende o avanço da regulamentação desses processos no Brasil, com conscientização sobre as doações possíveis e até a criação de um banco de olhos.
Além disso, a especialista lembrou que essa cirurgia segue todos os protocolos sanitários adotados na técnica para indivíduos da mesma espécie, respeita as normas de assepsia tanto na fase de coleta quanto na de operação propriamente dita e exige a assinatura de termos de consentimento e autorização pelos dos tutores dos animais envolvidos.
Regulamentação de procedimentos
O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) detalhou que os transplantes de órgãos entre animais em geral ainda demanda reflexões. Por meio de nota assinada pela Comissão Nacional de Bioética do Conselho Federal de Medicina Veterinária, a instituição defendeu o compromisso com uma prática profissional responsável, com avanços que respeitem a dignidade e os direitos dos bichos.
“Embora o Brasil seja um dos pioneiros na América Latina em pesquisas sobre xenotransplante – o uso de órgãos de origem animal para humanos –, ainda existe uma lacuna normativa quanto à regulamentação desse uso tanto para pessoas quanto para outros animais. A ausência de impedimentos jurídicos não elimina a necessidade de uma análise ética e consensual pela comunidade científica sobre os procedimentos”, ressaltou o CFMV.
Nos casos de transplantes experimentais entre animais, é imprescindível observar toda a legislação vigente para o uso de animais em pesquisas, com destaque para a Lei nº 11.794/2008, a Lei Arouca, que regulamenta o uso ético de animais em experimentos.
Os protocolos devem priorizar o bem-estar animal, com o consentimento formal dos responsáveis pelos bichos, além do cumprimento das normas éticas e legais aplicáveis.
Na prática clínica, a avaliação técnica e ética cabe ao médico veterinário responsável pela operação, que deve ponderar cuidadosamente sobre os benefícios e riscos de cada procedimento. “Em nenhuma circunstância deve-se beneficiar uma espécie em detrimento de outra, assegurando-se que o bem-estar de todas aquelas envolvidas seja prioridade e que o princípio da não maleficência seja respeitado”, completou o CFMV.
O conselho federal defendeu, ainda, a promoção de um debate mais amplo sobre o assunto, com participação da sociedade e do poder público, para estabelecer uma legislação específica sobre xenotransplantes, bancos de órgãos e tecidos de origem animal e o cadastro de potenciais doadores. “A discussão deve ser guiada pelo compromisso com o bem-estar animal e a ética, garantindo que práticas e normas sejam alinhadas aos princípios científicos e morais que orientam a medicina veterinária”, concluiu a entidade.
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